Tecnodicea (iii) — A Tecnologia e a Privacidade

Victor Osório
8 min readJun 2, 2021

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Nós vivemos em uma era sem deuses, uma era sem magia, com isso a tecnologia se tornou o centro da vida humana. Já temos uma definição do que é tecnologia, sabemos que nem sempre a tecnologia é boa. Mas quais foram os impactos na nossa privacidade? Esse é o terceiro texto de uma série que vai abordar a tecnologia filosoficamente e/ou sociologicamente a partir da visão de um engenheiro.

Ainda em revisão…

No livro Os Irmãos Karamazovi, Fiódor Dostoiévski cria uma história sobre as consequência da falta de moralidade em uma sociedade. É uma obra obrigatória. Você deve ler em algum momento da sua vida, por isso quero ler ela antes de completar 40 anos. Infelizmente na primeira vez que tentei ler, parei um pouco antes da citação máxima do livro, que alias se repete 3 vezes, e não a marquei. O personagem principal, que é um ser repugnante, discorre sobre as consequências da ausência de Deus e de um imortalidade, provavelmente com um conhaque a mão, ele diz que se Deus não existe, não há imortalidade e não há maneira correta de viver.

Já viu o filme Sin City?

Eu não sei o que você pensa sobre Deus, moralidade e alma, mas se lembre que esse livro foi escrito na época da Inglaterra Vitoriana, Czares Russos e eu não tenho a mínima ideia de como estava a França onde o autor morou. Talvez você já tenha associado moralidade com sexualidade, eu não vou falar de sexualidade, moralidade e privacidade vão muito além do que a mera conjunção carnal ou a exposição de um corpo nu.

Se você nunca parou para pensar sobre o que é moralidade, talvez seja essa um bom momento. Quem tem um código de ética moral, provavelmente sabe dizer o que é privado e o que é publico. Com quase toda a certeza a empresa que você trabalha tem esse código e lá diz que alguns documentos são confidenciais, ou seja, privados.

Privacidade é a característica que defini algo como intimo ou não. Ela normalmente é uma escala. Cada empresas vai ter documentos estritamente privados, documentos que podem ser compartilhados com alguns clientes e documentos públicos.

Mas o conceito de privacidade mudou radicalmente nos últimos 20 anos.

A Sociedade do Espetáculo

No livro A sociedade do espetáculo, Guy Debord faz algumas provocações que poderiam parecer alucinações em 1967, mas hoje parecem óbvias.

“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação.”

Algo na essência da sociedade mudou entre 1945 e 1967 e Debord conseguiu descobrir e revelar em seu livro. Mas esse fenômeno também é descrito por Byung-Chul Han em seu livro Sociedade do Cansaço. Enquanto a cultura do inicio do século XX incentivava o cidadão a ter ordem e disciplina, a cultura do século XXI incentiva ao desempenho e a excitação.

Ser bem sucedido não significa mais ter um lar estável, uma esposa/marido e três filhos. Mas conhecer inúmeros países, ter publicações, fazer sucesso nas redes sociais. Somos incentivados a todo momento a ter visibilidade. Temos que mostrar, não importando se pouco vivemos ou aproveitamos aquilo que estamos mostrando.

O Espetáculo como modelo de negócios

Essa cultura do espetáculo já existia na virada do milênio, mas os ventos do século XXI trouxeram um fator diferente. O que antes fazíamos apenas localmente e em situações especificas, começou a ser globalmente e a todo instante.

Para e pensa, se antes você queria se mostra um cara descolado e rico, você comprava uma passagem pra Europa e uma máquina fotográfica, tirava umas férias de no mínimo 15 dias para poder ter as experiências para registrar. Depois você tinha que convidar amigos seus para sua casa e durante um churrasco exibir os artefatos produzidos na viagem. Hoje você compra a passagem e o celular, tira as mesmas férias de 15 dias e passa todo o tempo se exibindo e interagindo virtualmente com seus amigos. Muito provavelmente você não irá aproveitar a viagem como antigamente porque não consegue se desligar da outra realidade. No fim não há churrasco, não há eventos, tudo é virtual. Uma eterna competição.

O caso relatado acima é extremo, mas é o desejo das suas redes sociais. Faça o experimento, abra o Twitter e haverá uma pergunta “O que está acontecendo?”. As redes sociais precisam de sua informação para manter as outras entretidas, você tem que colaborar, não importa como, pois esse é o modelo de negócios delas. Quanto mais tempo você ficar online, será exposto a mais propagandas Quanto mais coisas você compartilhar, maior será o conhecimento que a rede tem sobre você, mais assertivas serão as propagandas.

Agora, vamos voltar um pouco. Lembra que eu falei que somos uma sociedade excitada? Somos uma sociedade excitada e que se expõe muito na internet. Quando mais exposta for a sociedade e a intimidade de todos, mais favorecerá os modelos de negocios de algumas empresas.

Resgatando a privacidade

As redes sociais não vão mudar. Mas a sociedade pode mudar. O que aconteceu nos últimos 20 anos, foi que uma rede social procurou mudar radicalmente o que é privacidade. O primeiro passo se deu quando a lógica da comunicação foi invertida, antes Alice mandava mensagens para Bob, mas Carlos só veria se procurasse pelo perfil de Alice ou de Bob. Em um momento especifico, uma rede social inverteu a lógica. Ao Alice mandar uma mensagem para Bob, Bob seria alertado sobre a mensagem, mas Carlos, Daniela, Eduardo, Flávia, etc.. Todos os amigos de Alice e Carlos veriam a mensagem. Até certo ponto, trocas de mensagens, mesmo pública eram protegidas, agora não. Todas as trocas de mensagem são expostas.

Esse foi o pontapé inicial para que a exposição iniciasse. Com isso tudo aquilo que era privado se tornou público… Você sabe o que isso significa? Você sabe o que é ter prazer em tornar público aquilo que deveria ser privado?

Bom… Vamos recorrer a outro filósofo. Nesse caso Dany-Robert Dufour em A Cidade Perversa. Eu peço que você leia com calma a citação abaixo, sem tomar conclusões.

Vamos então examinar o que quer dizer “pornográfico”? Em “pornográfico” existe o grego pornê, “prostituta”, e graphe, “escrito”. E “prostituir” vem do latim prostituere, “expor em público”, por sua vez composto de pro, “adiante”, e statuere, “colocar”. A porno-grafia é portanto escrever, ou pôr adiante, ou encenar o que geralmente não é exposto em público. Mas seria tudo?

Ora, o que ele queria dizer? Ele não está defendendo a pornografia, muito pelo contrário. Ele está dizendo que ela é sintoma de algo muito maior. Nossa sociedade padece de uma falta de valores que se revela na exposição daquilo que devia ser combatido. Quando Karl Marx escreveu O Capital, ele combateu um dos males que eram vergonhosos pra sociedade da época, a exploração do trabalhador. É inocente quem crê que Marx expôs algo novo, a mesma denuncia já estava até no Novo Testamento. Mas qual a diferença? Enquanto Marx escreve, a burguesia perdia a vergonha de ser rica. O que antes era combatido e de certa forma escondido (sim, a luxuria era um pecado pela igreja católica), começava a ser visto com bons olhos. Esse é o conceito de pornografia. É a mesma coisa de sexo. O que antes era mantido em sigilo começou a ser exposto e quem expõe tem mais prazer em expor do que em desfrutar.

Já viu o filme Scarface?

Esse livro destrincha a mudança de valores que aconteceu no mundo nos últimos… creia… 400 anos! Essa mudança foi gradual. Lenta e gradual. O que hoje temos como nudes e influencers, começou com Pascal e sua relação conflituosa com sua libido.

Aqui retorno um conceito que já levantei. Devemos ser “otimista tecnológicos” e “conservadores ontológicos”. As tecnologias podem ser muito boas, mas se mantivermos alguns valores, entre eles destaco a privacidade. Mas… no mundo de hoje (se você não está no ano de 2021, espero que esse conceito seja claro pra você) a privacidade precisa ser resgatada. Muitos dos nascido pós 2000, não conseguem entender como ela nos afetam, por isso vamos detalhar um pouco.

A Internet

Quem teve a sua infância nos anos 1990, teve que assistir muito filme policial dos EUA dos anos 1980. Em muitos desses filmes tinha a declaração de direitos: “tudo que você disser pode ser usado contra você”. Entenda isso como uma máxima! Não existe lei do esquecimento na internet. Por mais que um país legisle sobre isso, isso não existe. As pessoas podem ler e tirar prints. Você pode até falar que estou defendendo quem faz bulling (tem outro termo?). Mas não! Isso é um conselho! Quando estamos somente na frente da tela, não conseguimos pensar quem está do outro lado, por isso limitamos o nosso superego. Damos total liberdade para agirmos, sem pensar nas consequências.

Mas mesmo que ninguém veja, a internet é uma memória de longo prazo e nós mudamos a médio prazo. O que você crê hoje, pode mudar radicalmente em cinco anos. Se manter conservador ao decidir o que compartilhar não é se opor a liberdade, mas é se precaver.

A internet consegue exacerbar tudo aquilo que já era pornográfico antes dela. Na música Do the Evolution, do Pearl Jam, isso já era denunciado, muito antes das redes sociais. É a “evolução” da sociedade…

A falta de reflexão sobre o que é privacidade reflete na valorização de um conflito eterno. Se você se dedica a mostrar mais do que é, o outro também, isso é um ciclo.

Conclusão

Esse debate pode parecer uma discussão moralista, e de certa forma é, mas devemos voltar ao Fyodor Pavlovich Karamazov. Pavlov era um homem que não nutria nenhum valor absoluto, por isso era controlado pelos seus instintos mais primitivos. Dostoiévski o classifica como o sensual, ou seja, tudo para ele é material, nenhum valor absoluto. E é assim o mundo contemporâneo, a tecnologia tem mudado muitos dos valores que eram intrínseco da humanidade. E mesmo que você não creia em valores intrínseco, você vai crer em valores construidos, vale a pena destruir eles?

Jacques Ellul tem uma máxima, que a técnica transforma tudo que toca em máquina. O que vemos não são apenas tecnologias, são técnicas sendo aplicadas através de tecnologias. Por detrás de tudo isso existe a ideia da performance… Mas performance de que?

É por isso que Ellul trabalha em “The Tecnological Society” o conceito da técnica balanceado. A Técnica por si só é uma forma que vai tentar deformar a sociedade em busca de performance. Quem pode combater a técnica? O poder econômico? Mas ele irá agir juntamente com a técnica. As crenças individuais? Elas não tem forças. Só quando uma crença se torna coletiva, é que ela deixa de ser individual e se torna a opinião publica, com isso a técnica é combatida. Uma técnica só pode ser combatida se uma crença individual se tornar opinião pública.

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Victor Osório

Senior Software Engineer@Openet | Java | Software Architect | Technology | Society