Tecnodicea (ii) — A tecnologia é boa?
Nós vivemos em uma era sem deuses, uma era sem magia, com isso a tecnologia se tornou o centro da vida humana. Já temos uma definição do que é tecnologia. Mas seria a tecnologia boa? Esse é o segundo texto de uma série que vai abordar a tecnologia filosoficamente e/ou sociologicamente a partir da visão de um engenheiro.
Uma das coisas que eu me dediquei a estudar quando tinha 20 e poucos anos foi Blues. Blues é um estilo musical originalmente africano, surgido na África subsaariana, mais precisamente em países que você nunca ouviria falar como a Burkina Faso. E hoje está representando a humanidade fora do sistema solar através da voz de Blind Willie Johnson.
Se você quiser catalogar os estilos musicais dentro do Blues, verá que temos muito poucos hoje. Todas as músicas são bem parecidas, apenas variações do mesmo tema. Mas se você procurar por um termo específico, o Delta Blues, verá que se tem uma variedade de estilos muito grande.
Delta Blues é a especificação do blues do delta do Mississippi feito até a segunda guerra mundial. Depois tivemos o Chicago Blues, que se refere ao blues feito na cidade de Chicago, depois que houve uma grande migração. Eram os filhos e sobrinhos dos cantores de blues migrando atrás de emprego. Hoje tudo descende do Chicago Blues, uma variante um tanto mais pobre, mas que está muito mais registrada. Se você quiser conhecer essa história magnifica, procure o documentário The Blues do Martin Scorsese.
Mas porque eu contei essa história sobre um estilo musical afro-americano? Porque essa história tem elementos muito bons para categorizar o impacto da tecnologia sobre nossas vidas.
A Tecnologia pode ser boa
Eu gostaria muito de ter contado a mesma história sobre o Baião, mas infelizmente nosso congresso não tinha um funcionário audaz que resolveu registrar todos os estilos musicais do pais com um dinheiro que aparentemente estava sobrando.
Os EUA devem eterna gratidão ao senhor Alan Lomax, principalmente porque o dinheiro já havia sido cortado. Se não fosse por ele, nós só conheceríamos a cultura erudita que está registrada nos papeis. E se não fossem os papéis e mais as técnicas de registro de música, também não conheceríamos nem a erudita.
Em outras palavras, se não fosse a tecnologia, estaríamos consumindo apenas músicas os nossos vizinhos, em celebrações locais ou bares imundos. Nossa música passaria por uma seleção simples, feita por pessoas que conhecemos.
Mas é através da tecnologia que podemos conhecer o mundo sem precisar se aventurar e viagens longínquas. Pierre Lévy em seu livro O que é o Virtual?, explica que algumas tecnologias podem mudar as fronteiras da realidade, trazendo o que antes era distante para perto ou fazendo o que é perto distante. Hoje é provável que um adolescente no Brasil esteja ouvindo uma música composta ontem no Japão.
Esse mesmo efeito aconteceu quando Gutenberg criou sua prensa de tipos móveis em 1439, livros que antes estavam restritos a poucas bibliotecas, começaram a ser divulgados. O conhecimento é democratizado através da tecnologia. Se você nascesse em 1938, era bem capaz de você morrer sem nunca ter aprendido a ler, sem nunca ter ouvido uma música de fora da sua aldeia e sem ter viajado para fora de um raio de 30km do seu local de nascimento.
O outro lado da moeda
Mas a mesma tecnologia que faz com que o conhecimento seja compartilhado, pode fazer com que ele passe por uma processo de curadoria que nem sempre é bom. Como já disse, antes existiam muitos estilos musicais, mas agora como o jovem de um lugar remoto pode ouvir música de outras regiões, ele será definitivamente influenciado por outras regiões. Assim é bem provável que jovens estejam produzindo música no Brasil, com os mesmo padrões estéticos da Coreia do Sul.
Esse efeito pode ser apenas um dos efeitos negativos da super exposição de artefatos culturais de várias regiões. Culturais locais estão sendo exterminadas pela cultura de massa de nações ricas.
Bumba meu boi no Piauí
Quando eu era criança, existia no Piauí a celebração do Bumba meu boi, eu ainda guardo na lembrança a sensação de ter visto, apesar de não saber se foi na televisão ou na rua. Hoje essa celebração é oficializada como a celebração de uma lenda única, mas em 2010, ao participar da Feira do Livro de Teresina, tive o prazer de conversar com Assis Brasil. Foi ma conversa despretensiosa, eu era penas uma alma cansada no calor de 40ºC e ele um idoso, logo procurei uma sombra pra me sentar, com um livro dele em mãos. Ficamos horas conversando, descobri que ele morou na cidade que eu moro, e teve uma hora que ele me relatou que a lenda do Bumba meu boi era única por cidade e que em cada cidade a estética e cerimônia da festa eram completamente únicos. Com a crescente mídia de massa, a festa foi morrendo no Piauí, ficando apenas em algumas regiões do Maranhão, onde o governo se encarregou de preservar.
Na cultura, esse efeito é conhecido como massificação. É ótimo para os modelos de negócios das gravadoras e grandes empresas, elas deixam de tratar com centenas de artistas. Mas é péssimo para a cultura de modo geral, países perdem sua cultura e a diversidade cultural é reduzida drasticamente.
Análise
Lembra qual era a nossa pergunta? Se a tecnologia é boa, ruim ou neutra? Não há resposta pronta. Cada tecnologia e cada técnica tem que ser avaliada individualmente, mas precisamos ter em mente alguns fatores muito importante: o tecnicismo e a ideia de controle técnico-científico.
Antes de parar para escrever esse texto, eu estava lendo um texto sobre Anders Günther e sua ideia de tecnologia, nesse texto 2 termos chamaram minha atenção: “Otimismo Utópico” e “Conservadorismo Ontológico”. Outro autor que tenta falar sobre o mesmo assunto é Egbert Schuurman em seu livro Fé, Esperança e Tecnologia. Schuurman tenta não ser crítico a tecnologia, não coloca sua opinião, ao contrário do Ellul, mas ele crê que temos uma fé cega que ele chama de Tecnicismo.
O Tecnicismo acontece quando o homem vira prisioneiro da tecnologia, prisioneiro do avanço tecnológico. Um homem só crê naquilo que a técnica toca.
Quer um exemplo claro?
As análises econômicas frias e calculistas que vemos todos os dias na televisão. A ideia de um controle da economia através de um método, ou escola, sem se preocupar com os danos humanos. São análises superficiais que não pensam no todo, tratam a economia como uma máquina e não como algo que toca a vida de milhões de pessoas.
O tecnicismo se baseia na falsa ideia do controle técnico científico. Essa ideia é comum na nossa sociedade. Essa ideia é muito simples e quando eu explicar você vai levar um susto. É a ideia de que podemos controlar tudo através da técnica e da ciência.
Na verdade a sociedade já deu um passo atrás nessa ideia, mas não percebeu. Se você valoriza produtos orgânicos, você de certa forma já não crê no controle técnico-científico. Mas, infelizmente, nossos burocratas, políticos e a grande maioria creem.
A infertilidade masculina e agrotóxicos
Não sei se você reparou, mas há um grande número de casais sem filhos nos dias de hoje. No meu grupo de amigos mais próximos, alguns demoraram muito para ter filhos. Eu demorei quase 3 anos. Quando estava com 2 anos de tentativa, resolvi consultar um urologista e entre exames e consultar vem o veredito: sua fertilidade está baixa. Sim, bate aquela depressão. Será que não vou conseguir ter filhos? Quando eu perguntei o que causa isso, a resposta me fez rir, ele simplesmente disse que se soubesse ganhava um Nobel. Na verdade, esse é um problema bem recente que não está bem documentado por dois fatores, o primeiro deles é que homens não procuram médicos e o segundo é porque ninguém sabe o que realmente está acontecendo. Mas entre as recomendações veio: só consuma produtos orgânicos. Poucos meses depois a menstruação da minha esposa atrasa por 9 meses.
O que essa história pessoal sobre infertilidade temporária pode dizer. Nada, por enquanto. A existência de uma correlação não quer dizer causalidade, porém há uma correlação que precisa ser investigada. O crescimento do famoso AgroBusiness veio acompanhado da diminuição massiva da fertilidade masculina no mundo.
Com isso eu retomo as duas palavras que lancei, o “otimismo utópico” tem que ser acompanhado de um “conservadorismo ontológico”, nós temos que ter um otimismo em relação a tecnologia, mas devemos ser conservadores em adotar a tecnologia. Devemos investigar todos os efeitos dela em todas as áreas da nossa vida.
Voltando ao Blues
O movimento Ludista veio como uma resposta a industrialização. Eles queriam quebrar todas as máquinas para que tivesse seus empregos de volta. Antes da industrialização, todos eram artesãos, hoje artesãos são uma minoria mas que ainda existem apesar da industrialização.
Mas houve um inverno da manufatura com produtos sempre produzidos em larga escala, com os mesmos moldes e nem sempre boa qualidade. A música está nesse inverno, creio que a noite mais longa já tenha passado, mas é muito comum vermos o mesmo molde sendo repetido exaustivamente.
Quando será que teremos de volta os contextos locais? Será preciso governos decretarem que as rádios devam ter grande parte da sua programação regionalizada? Isso com certeza vai criar muitos empregos! Imagina se todo dinheiro que você envia para cantores famosos norte-americanos, ou coreanos, fosse pra um rapaz de 18 anos extremamente criativo que está a duas ruas de você?
Esse é uma série feita por um engenheiro, se tiver alguma inconsistência, for favor, entre em contato comigo. Não sou o dono da verdade.