O Som do Silêncio

Victor Osório
7 min readJan 18, 2023

Esse post visa expandir as ideias que joguei em um fio do Twitter. Nele vou falar sobre neoliberalismo e oportunidades.

Os valores da nossa sociedade

Antes de começar devemos primeiro nos fazer a seguinte pergunta: quais são os valores da nossa sociedade? Essa não tem uma resposta fácil e se eu elaborar uma resposta você pode dizer que não concorda por dois motivos óbvios:

  1. Você não consegue observar esses valores ao seu redor
  2. Esses valores realmente não existem ao seu redor.

(1) e (2) podem ser verdadeiros, não são excludentes e não fazem parte de um combo. Pode ser que o mundo ao seu redor seja exatamente igual ao meu e pode ser que ele seja completamente diferente. A minha realidade não inviabiliza a sua e nem a sua inviabiliza a minha.

POR ISSO vou partir de um FATO para identificar o principal valor da nessa sociedade. Já reparou quantos elementos ao nosso redor começam com “i”? Caso você nunca tenha reparado, “i” significa “eu”, LOGO se formos traduzir os nomes teremos “euTelefone”, “euRobo” ou “euComida”. O que isso quer nos dizer?

Que nossa sociedade é centrada no indivíduo.

Você conseguiu ver o paradoxo da frase anterior? Ele não e tão óbvio, principalmente para os mais jovens. Mas sociedade é algo coletivo que pressupõe vários indivíduos e ela não poderia ser centrada em um indivíduo. É um paradoxo, uma falha no sistema que nos joga um contra o outro pela simples inexistência de categorias coletivas.

Complicou né? Então vamos pensar nas pessoas que estão ao nosso redor fazendo as mesmas atividades que nós fazemos. Você acredita que há um senso de coletividade? Muitos vão responder que sim, mas são a maioria?

O indivíduo do século XXI é sozinho em suas lutas.

Charge mostrando a evolução do conflito na literatura. Começa com o homem contra a natureza, depois contra a sociedade, depois tecnologia, depois contra o homem, contra sua vontade, sua realidade, Deus, a ausência de Deus e até por fim contra o próprio autor.
Charge mostrando a evolução do conflito na literatura. Fonte: http://www.incidentalcomics.com/2014/05/conflict-in-literature.html

Mas o grande problema é que muitos de nós temos os mesmos problemas. O que difere os indivíduos de hoje dos indivíduos do século XIX é que não podemos mais segmentar apenas por classe e região. Antes existiam os trabalhadores de uma certa região, mas hoje é bem provável que você tenha mais em comum com alguém que está longe que com o seu vizinho.

Isso não significa que você não deva conversar com o seu vizinho, vocês tem interesses em comum pois moram perto.

E o Neoliberalismo?

Quando eu entrei na faculdade existia um grande dragão chamado neoliberalismo que para muitos não passava de um moinho de vento porque nunca era corretamente caracterizado.

Don Quixote e os moinhos de vento.

Eu era um desses que não acreditava que isso realmente existia. Pessoal dos movimentos sociais diziam que tínhamos que lutar contra o “neoliberalismo”, mas eles mesmo não sabia definir o que era. Até que li o livro “Realismo Capitalista” que conseguiu trazer para mim uma boa definição.

Não vou querer aqui definir corretamente o que o livro trás sobre o assunto, só vou pontuar aquilo que é importante para a reflexão que quero trazer.

Uma cultura neoliberal seria caracterizada pela ausência completa do senso de coletividade, de sociedade ou de civilização. Todas essas crenças colapsaram e só nos restas sobrevier no caos contemporâneo.

O capitalismo é o que sobra quando as crenças colapsam ao nível de elaboração ritual e simbólica, e tudo o que resta é o consumidor-espectador, cambaleando trôpego entre ruínas e relíquias.

Antes que você me chame de comunista eu quero dizer que nunca fui um comunista, mas me considero centro-esquerda. A confusão surge quando um grupo diz que todos que discordam de um ultraliberalismo são comunistas.

Sociedade e Oportunidade

— Mas e o que esse negócio de sociedade tem de bom?

Quando nós individualizamos tudo, tudo vira esforço próprio e toda falha é culpa do indivíduo. Mas as condições que nos fazem chegar aonde chegamos são mais coletivas que individuais.

Vamos ver por exemplo o que te fez chegar ao seu emprego atual?

  • Fez faculdade? Teve ajuda (ou não) de professores.
  • Estudou em uma escola? Teve ajuda (ou não) de professores.
  • Teve tempo de só estudar? Teve ajuda da família.

Esses são somente alguns exemplos básicos. Uma vez eu ouvi um presidente do sindicato dos donos de hotéis dizer que o governo nunca deu nada para eles. Isso só seria verdade se todos os funcionários deles tivessem estudado em escolas privadas e toda infraestrutura de transporte e esgoto fosse paga pelo bolso dele. Mas não! Ele vive em uma civilização que criou mecanismos para se manter. Abolir esses mecanismos é abolir a civilização.

Imagina se não houvesse escola pública, saúde pública, saneamento, transporte público e outras tantas regalias que só o estado dá… Como seria a vida na cidade?

O Empreendedor e o Viés de Sobrevivência

Nós sempre valorizamos as vozes de quem deu certo e esse é o problema da nossa sociedade. Existem centenas de palestras de pessoas mostrando qual caminho elas acreditam que trilharam para chegar ao que elas chamam de sucesso.

Me lembro de uma vez ter visto uma palestra “Como virar gerente em 2 anos” e a pessoa mostrava todos os passos que fiz no meu primeiro emprego no qual não consegui nenhuma mudança efetiva de posição. Será que eu não segui os passos dela?

É hora de falarmos sobre Viés de Sobrevivência e Exemplo Anedótico.

O que essa pessoa está fazendo é apenas dizendo o que ela fez, isso não significa que tenha alguma relação com o sucesso dela. Na verdade o que ela está fazendo é apenas mostrando um exemplo anedótico. Um exemplo anedótico é apenas um caso solto sem nenhuma relevância significativa. Para que pessoas possam tomar conclusões é preciso que se junte vários exemplos e se chegue a uma conclusão.

E se tivéssemos observado que a grande maioria dos gerentes chegaram a essa posição com aproximadamente 2 anos trabalhando no mercado. Podemos chegar a conclusão que com apenas 2 anos podemos virar gerente? NÃO!

É aí que entra o viés de sobrevivência. Nós só estamos olhando para aqueles que deram certo e esquecendo de todos aqueles que não deram certo. Se formos olhar apenas para os que deram certo, poderíamos dizer que uma pessoa pobre, de periferia, não branca ou não sudestina não pode virar CEO de uma multinacional, porque a maioria esmagadora de pessoas que são CEO de uma multinacional brasileira são classe média, formadas em boas escolas, brancas e nasceram no sudeste.

É preciso olhar para as ausências, para o silêncio. O silêncio fala mais que o discurso de mil pessoas.

Um avião da segunda guerra repleto de pontos vermelhos. Há locais sem pontos vermelhos em uma região da asa, atrás do piloto e nos motores.
Cada ponto vermelho nessa imagem representa uma avaria na fuselagem do avião. Cada ausência de ponto vermelho significa que os aviões que sofreram avarias nesse local não puderam contar a história.

Cuidado para o discurso

É nessas horas que precisamos ter muito cuidado com o discurso que assumimos nas redes sociais. Eles tem muito impacto nas pessoas que nos seguem.

Nessa última semana tivemos várias demissões em massa de trabalhadores das empresas de TI no Brasil. Muitas dessas demissões foram em empresas que estão em franco crescimento dando lucros aos seus empregadores. Mas nós temos o perfil das pessoas que foram demitidas? Não.

Alguns tentaram rascunhar algumas análises, mas sem nenhum rigor acadêmico, que mostram que sua maioria eram de pessoas em inicio de carreira.

Enquanto isso outras pessoas continuavam sua batalha para convencer o mundo que fazer faculdade é perca de tempo, outros que uma certa linguagem não vale a pena, teve uma que falou que livros acadêmicos são ruins (essa vi no LinkedIn e o livro não era acadêmico). São pessoas que assumem que porque uma experiência não foi necessária para a sua jornada, ela é completamente descartável.

Ora, se a pessoa não fez uma faculdade e conseguiu uma vaga de desenvolvedor, não significa que as outras não possam fazer faculdade. Essas pessoas estão lutando contra moinhos de ventos, estão lutando contra conquistas civilizatórias de outras pessoas. São discursos tóxicos, egoístas e totalmente centrado na experiência de um indivíduo.

Imagem de um painel de energia e um aviso de perigo: “choque”.
Photo by Troy Bridges on Unsplash

Ainda recordo do dia que vi um post no LinkedIn sobre um garoto de periferia que defendeu o doutorado (ou foi aceito depois terminar o mestrado) na Unicamp, tirei o print e postei no Twitter… Para minha surpresa um rapaz branco, paulistano de classe média que fez uma faculdade particular veio militar que fazer faculdade não leva ninguém a lugar nenhum.

Existe uma grande diferença entre o universo de um rapaz de periferia e um de classe média paulistano. Muitas das lutas diárias que o rapaz de periferia tem não são concebíveis ao rapaz de classe média.

As vezes as reclamações de pessoas privilegiadas parecem até piada perto de quem tem menos privilégio. Eu morei em república de estudante dos meus 18 anos até casar aos 31 e me lembro e uma amiga reclamar que o marido não sabia lavar um prato… Isso pra mim parecia uma piada pois quem mora em república se não lavar prato, não tem prato limpo, se não lavar roupa, não tem roupa lima e se não fizer compras, não tem comida.

Agora para e pensa: como alguém de periferia pode se destacar no mercado de trabalho sem uma boa qualificação? Por esforço próprio? Pode até ser, mas aí caímos no viés de sobrevivência novamente. É mais provável que ele vire um entregador de comida por aplicativo do que um profissional de renome.

Histórias de sucesso e superação são bonitas, emocionam, podem até nos dar orgulho, mas elas sempre são e sempre serão exceções a regras. Se não fossem exceções não nos trariam emoções.

Precisamos balizar a nossa discussão pela regra e não pela exceção. Eu sempre recomendo as pessoas que estudem, se apresentem bem vestidas, conheçam o ambiente em que trabalham, etc… Foi por isso que escrevi a thread abaixo.

É melhor ser precavido.

--

--

Victor Osório

Senior Software Engineer@Openet | Java | Software Architect | Technology | Society