Tecnodicea (i) — O que é Tecnologia?

Victor Osório
7 min readMay 27, 2021

Nós vivemos em uma era sem deuses, uma era sem magia, com isso a tecnologia se tornou o centro da vida humana. Mas nós sabemos o que é tecnologia? Esse é o primeiro texto de uma série que vai abordar a tecnologia filosoficamente e/ou sociologicamente a partir da visão de um engenheiro.

Para se pensar tecnologia, temos que pensar o ser humano. Como um mamífero fraco saiu de uma região inóspita e começou a dominar praticamente todas as regiões do mundo?

Estima-se que a espécie Homo Sapiens surgiu perto do Sudão. Pelo menos isso é o que lembro de Sapiens: Uma breve história da humanidade.

Para responder essa pergunta, teremos que justificar que a força humana não reside nos seus músculos, mas no seu intelecto. A espécie Homo Sapiens é a única que pode moldar o meio em que vive, que pode alterar seus próprios hábitos e cultura. Ao contrário de outras espécies não somos limitados pela nossa genética, ela tem muito poder sobre nossas atitudes, mas podemos conscientemente dizer não a ela e ir além.

Mesmo tendo uma pele fina, poucos pelos no corpo e com escassa capa de gordura, podemos morar em regiões frias. Fazemos isso matando animais para usa sua pele como vestimenta, sua carne como alimento e sua gordura como combustível.

Se você pensa que o nosso mundo tecnológico surgiu por volta do século XIX, ou XX, está completamente enganado. O homem é uma animal tecnológico! Essa é nossa essência. Nós não sobreviveríamos em muitos lugares sem tecnologia.

Então o que é a tecnologia? A tecnologia é a materialização da técnica. São artefatos criados pelo ser humano através reflexão técnica para ser usada como ferramenta.

Mas ficou um ponto em aberto… O que é técnica?

Quem refletiu sobre a técnica foi Jacques Ellul em seu livro The Technological Society. Eu estou relendo ele e fazendo um resumo, caso você não queira ler, confira meu resumo.

Podemos definir a técnica como um agrupamento de ações ou métodos catalogados para se atingir um determinado fim. A técnica sempre tem um fim especifico. Esse texto é criado usando uma técnica que tem como fim causar uma reflexão, nem tanto passar o conhecimento.

Animais também tem técnicas, não podemos ser ignorantes ao ponto de dizer que ela é exclusiva do ser humano. Se você tem gatos, pode observar como eles “brincam” com pequenos objetos em sua casa. Eles na verdade não estão brincando, estão apenas treinando técnicas de caça. Foi por isso que aceitamos que eles morem em nossas casas, foi o modo mais fácil de se eliminar um outro animal bem indesejado, os ratos.

IoT, Cerveja e Ratos

Muito provavelmente os gatos foram domesticados no Egito, na verdade creio que os gatos domesticaram os humanos. Quando começou a haver o acumulo de grãos e muito provavelmente a produção de cerveja, vem um mal inevitável: os ratos. Se você nunca produziu cerveja, não deve saber que logo após a brassagem, fazemos a filtragem e eliminamos os grãos, ficando apenas com o mosto. Os grãos são descartados e fermentam muito rapidamente, quando fiz em casa, em apenas um dia começou surgir um cheiro forte e desagradável.

Uma vez trabalhei em uma empresa que estava criando um laboratório de IoT usando uma planta cervejeira. Em poucos meses um novo problema surgiu: ratos! Fios começaram a surgir corroídos, equipamentos pararam de funcionar. Logo começou uma saga de técnicas de como eliminar essa praga. Todos tinham que dar ideias. Eu falei que desde o Egito já tínhamos uma boa técnica: gatos. Mas não, eles queriam algo mais prático.

Mas voltando as técnicas animais, qual a diferença entre elas e as nossas? Nossas técnicas evoluem sem que nossa genética evolua. Se fizéssemos um experimento sociológico que consiste em pegar filhote de ser humano e um de gato para criar isolado. Provavelmente o ser humano ficaria muito triste e teria problemas psicológico graves, mas isso é hipotético, não faça em casa.

Nesse experimento, perceberíamos que o ser humano criaria alguns meios de conseguir alimento e esses meios iam evoluindo de acordo com o tempo. Muito provavelmente, quando estivesse com seus seis anos a criança já estaria criando suas primeiras armadilhas. Se esse experimento seguisse por gerações, quem sabe ela teria tecnologias avançadas para pegar a comida.

Já o gato, poderíamos observar ele por gerações e não veríamos diferença nas técnicas de caça. É bem provável que o gato, em sua história, tenha desenvolvido outras técnicas para continuar sendo apto a caçada, mesmo tendo comida a disposição.

Essa é a grande característica do ser humano: a reflexão técnica. Ellul para definir a técnica, cria dois novos conceitos: A Operação Técnica e o Fenômeno Técnico.

Operação Técnica pode ser definida como qualquer operação executada com um determinado método com o objetivo a ser atingido.

Fenômeno Técnico pode ser definido como a busca pela eficiência e cada técnica. A técnica não permanece inerte, ela evolui, sempre buscando eficiência.

Com isso podemos concluir que a tecnologia é apenas a materialização da técnica. São ferramentas que criamos para nos auxiliar a executar algumas atividades. Outro autor importante nessa área é Lewis Munford, em seu livro Techniques and Civilization ele analisa a história da humanidade através da evolução das ferramentas. Para ele a ferramenta é mais importante, para Ellul é a técnica.

Implicações

No espírito da nossa época, tem-se o senso comum que a tecnologia é sinônimo de dispositivos eletrônicos. Isso limita em muito a nossas possibilidades. As pessoas são realmente apaixonadas pela tecnologia, vamos falar disso mais a frente, mas posso afirmar que pós 1989, a tecnologia assumiu o posto de deus da nossa era. Temos fé na tecnologia, uma fé que foi relativamente cega até 2018. Cremos que ela vai nos ajudar a salvar a humanidade. Entenda salvar como você bem quiser, quem sabe podemos definir on que isso significa mais a frente.

Mas se pensarmos tecnologia como qualquer artefato que ajude atingir um fim, temos uma palheta de cores muito mais vivas. Coisas simples podem ser usadas para atingir fins complexos, relações podem voltar a ser analógicas, podemos voltar a valorizar o analógico, etc…

A tecnologia é tudo aquilo que nos cerca, desde o livro que você lê, o celular que você usa, a cadeira que você senta, o café que você toma. Se você é um apaixonado por tecnologia, comece a pensar nos processos, todos eles são interessantes.

Isso é um movimento que tomou corpo nos últimos 10 anos. Quantas pessoas você conhecem que escolhem o pó do café, o método de moagem e de infusão? Quantas pessoas você conhece fazem a própria cerveja? Conhecem toda a técnica e começam a produzir na própria casa.

Por incrível que parece, apesar tecnologia ter virado um deus depois de 1989, eu nunca vi um mundo tão não-tecnológico quanto o mundo dos anos 1990 e 2000. As pessoas não amavam a tecnologia, amavam produtos. Elas não estavam interessadas qual era a tecnologia tão inovadora no primeiro iPhone, elas estavam interessadas no primeiro iPhone.

O que você faz com o touch?

Para finalizar essa história do primeiro iPhone é tragicômica. Eu posso afirma com toda a certeza que o primeiro iPhone não trouxe inovação tecnológica nenhum, eu trabalhava na número 1 de vendas de aparelhos celulares nessa época. Steve Jobs, que por muitos é visto como um messias, não ganhou a batalha por ter os melhores engenheiros, mas por conhecer melhor seu público.

Ao ser lançado, todas as outras marcas acompanhavam a release. E todos rimos porque, ao lançar o iPhone, houveram duas ausências que nos fizeram rir.

A primeira ausência foi do SMS. Sim, no primeiro iPhone não tinha SMS! Primeiro era um produto totalmente voltado para internet e meio de comunicação primordial era o SMS, logo como fazer a migração? A segunda questão é que era um produto de luxo, logo precisava criar um nicho de mercado, logo você precisava mostrar usuários de iPhone tinham exclusividades, logo eram precisos meios de comunicação exclusivos… logo tira o SMS que todo mundo vai reparar.

A segunda ausência touch resistivo. Ora, quais são os dois tipos de tecnologia touch que temos? O resistivo e o capacitivo.

Com o resistivo temos uma precisão enorme, mas ele não é sensível. Talvez você nunca tenha usado um PalmTop, mas não dá pra não lembrar da canetinha. Ela ainda existe para Designers, existem pranchas de desenho que eles usam para criar desenhos já digitalizados.

Com o capacitivo temos pouca precisão e muita sensibilidade. Não é possível fazer desenhos, ou uma escrita manual, mas dá pra selecionar ícones.

Em 2007, todas as fabricantes de aparelhos conheciam essa duas tecnologias, mas só ofereciam telas resistivas pelo motivo óbvio até aquele momento: temos muito mais precisão. Mas ninguém precisava de precisão…

E assim eu termino esse primeiro texto. Steve Jobs nos ensinou que não devemos nos apaixonar pela tecnologia, mas pelo problema. Ao escolher uma tecnologia muito menos eficiente, ele mostrou que ela era mais que suficiente para que atingíssemos o fim de desejamos. Não confunda tecnologia com produto e muito menos com dispositivos digitais.

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Victor Osório

Senior Software Engineer@Openet | Java | Software Architect | Technology | Society