O Espantalho
Eu gosto de estudar falácias. Elas são extremamente úteis se você quer ter um pensamento crítico e conseguir compreender como as pessoas manipulam o discurso para tentar impor a sua verdade. Elas tem me sido bastante úteis nos últimos 10 anos.
Se você não conhece as falácias mais comuns, tem um jogo bem interessante que eu conheci por volta de 2009 chamado Jogo das Falácias. A ideia é que estudantes tente criar e reconhecer argumentos falaciosos e usar cartas de baralhos. Como eu não sou estudante nunca joguei mas eu acho as cartas bem instrutivas.
E nesses dias tenho refletido como a falácia do espantalho tem sido usada de uma forma completamente nova. Talvez essa seja uma falácia conhecida, mas que eu nunca vi. Tudo começou com um Twitter irônico do @direitasiqueira.
Esse tweet me deixou bem intrigado. Como nas últimas décadas o cristianismo se desvencilhou completamente da imagem do Cristo?
Caso você associe qualquer característica desse governo com o cristianismo, você precisa parar para ler um pequeno trecho do maior discurso do Cristo. Ele está no livro de Mateus começando no capítulo 5, aqui vou reproduzir apenas as conhecidas “bem-aventuranças”.
Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus.
Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados.
Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos.
Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus.
Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus.
Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa os insultarem, perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês.
Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a recompensa de vocês nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês.
Talvez você tenha uma imagem da religião cristã e das associações dela com governos… É sobre esse espantalho que quero falar. Desde Constantino, toda vez que o cristianismo é usado para defender um governo ele precisa se corromper primeiro e o primeiro passo é criar um espantalho. É preciso riscar da mente dos cristãos esse trecho acima e fazer uma lavagem cerebral para que eles aceitem figura nefastas no poder.
É como se usassem o espantalho em si mesmo. Criam um espantalho para que o povo aceite um falso cristianismo, um falso cristo. O cristo armamentista que foi intensamente compartilhado como foto natalina de políticos americanos é uma invenção moderna.
Cristo, Paulo e o Antigo Testamento
O primeiro passo para se criar esse Cristo é dizer “Não olhe para Cristo”. Mas como essa frase não pode ser dita de forma audível, ela tem que ser subjetivada. É preciso recriminar essa figura “rebelde” e “transgressora” que foi o Cristo e para isso tem que se apontar para outras figuras ou outros discursos. Para atingir esse objetivo esses pastores tem um grande aliado: o tempo.
Cristo viveu no primeiro século, aliás ele é a causa do primeiro século ser o primeiro. Todos os escritos que temos sobre ele foram escrito por pessoas que ou conviveram com ele ou conviveram as histórias dele vivam na memória do povo. Creio que não há ninguém vivo que tenha escutado o Sermão do Monte. Se você refletir nesse texto vai perceber que ele é extremamente inclusivo. Ele não descarta a ideia de pecado, mas ele defende a tese que somos todos pecadores por isso somos iguais então ao invés de dividir deveríamos nos unir. Não devemos julgar, mas amar.
Essa interpretação era viva no coração daqueles que recebiam as cartas de Paulo, por isso ele não as precisava repetir o tempo inteiro. Um carta escrita no primeiro século deveria ser econômica, cada palavra era contada como era na época do telegrama.
Já o Antigo Testamento tem uma dinâmica completamente diferente, ele foi escrito na antiguidade. Alguns textos são contemporâneos de textos mesopotâmicos, eles não pode ser lidos como lemos o jornal de hoje. Quem faz isso é mau caráter, principalmente aqueles que defendem um criacionismo mágico, como se Deus tivesse tirado o homem de uma cartola.
Outra forma de mentir usando a bíblia é apagar dos heróis do antigo testamento seus erros. Eles erravam e erravam muito. Todo mundo é passível de erro, quem não reconhece um erro desses heróis está se defendendo da possibilidade de emitir uma auto crítica. Eu não sou presbiteriano, nunca fui e provavelmente nunca serei, somente conheci a figura do Augustus Nicodemus recentemente e fico me pergunta: qual a dificuldade de reconhecer o erro pelos erros da igreja sul africana onde ele estudou? Qual a dificuldade de reconhecer que não havia (e não há) ameaça comunista?
Não existe problema em assumir um erro do passado, isso é sinal de maturidade. Mas essa dificuldade só demonstra que esse apoio é ideológico. Eles conseguiram construir um Jesus que apoia ditaduras, divide um povo por cor de pele, odeia o pobre. Para isso eles precisam até apagar um dos feriados mais tradicionais do cristianismo. Ele chega ao cumulo de rasgar a páscoa da bíblia. Na minha igreja originária ela era comemorada como uma dupla libertação, a libertação da escravidão (Judeus foram libertos do Egito) e do pecado (sacrifício/ressurreição de Cristo). Eu não sei se minha antiga igreja descende das igrejas abolicionistas norte americana, mas sei que esse significado já diz que ela não está na linhagem histórica de Americana/SP (associada até hoje com os Confederados).
A pseudo-ortodoxia
Essas pessoas que apoiam o atual governo, ou que já pularam do barco para defender um novo governo que admira movimentos supremacistas da Ucrânia, declaram ser “ortodoxos”. Mas o que significa isso?
Na verdade a ortodoxia e o liberalismo teológico são mais dois espantalhos criados. Liberalismo teologizo foi um movimento teológico que existiu no século XIX, por causa dele alguns teólogos tiveram que defender a validade da bíblia como “documento sagrado”. Eu não sou teólogo, sou engenheiro e estou aqui para analisar técnicas, logo seja benevolente com a minha descrição.
Mas no século XX o movimento de ortodoxia foi sendo transformado em fundamentalismo. É preciso frisar que os fundamentalistas não defendem a bíblia em momento algum, eles defendem a interpretação da bíblia conforme a tradição norte-americana. Existem alguns tons de cinza aqui, alguns vão aceitar o evolucionismo, mas vão defender um teologia de estado que só aceita o liberalismo econômico. Mas sempre existirá a necessidade de abafar o debate e impor uma versão única sempre alinhada com teólogos importados.
Essa visão fundamentalista é uma inovação recente na cristandade. No passado era comum serem feitos concílios em que haveria um grande debate de ideias e dele sairia uma carta de comunhão e não um processo de divisão. Essas cartas são hoje conhecidas como Credos. Você pode procurar o Credo Niceno e outros tantos que existem. Eu não estou afirmando que não existiam divisões, não vou negar a história, mas existem mais credos que cisma.
Esses novos ortodoxos não estão preocupados com nenhuma ortodoxia, eles estão preocupados com o controle ideológico. Eles não aceitam teologias que discordam deles. Quando uma dessas surge o primeiro passo é criar um espantalho para depois poder bater. Foi o caso da Teologia da Missão Integral (TMI), quando um teólogo tentou criticar ela intelectualmente teve que usar o argumento de “não há nada de novo por isso pode ser descartada”. Ora, se como ele mesmo defendeu, a TMI era apenas uma retomada do pensamento da teologia antiga, porque descartar? Talvez porque era uma teologia voltada ao pobre, como é o sermão do monte.
A mulher e a bíblia
Talvez suas sinapses já associem a bíblia com a submissão da mulher ao homem. E de certa forma isso faz sentido, mas também é uma falácia.
A bíblia é um texto antigo e ela nunca pode ser lida ignorando o contexto que foi escrita. Eu falei muito da pessoa de Cristo e como ela é apagada pelos “ortodoxos”. Eu lhe convido a ler os quatro evangelhos vendo qual foi o papel que o Cristo deu a elas. Talvez você não veja nenhuma diferença com os dias atuais e é aí que vemos como esse texto é revolucionário. Ele foi escrito em uma época que um homem não poderia falar com uma mulher se não fosse o marido dela.
Em alguns momentos cartas são direcionadas a casais, mas o nome da mulher vem antes do nome do marido. Você com sua cultura moderna não entende, mas isso significa que ela era a chefe de família. Em outras cartas a mulher lia perante a comunidade, o que a coloca em uma posição de liderança.
Toda essa teologia machista que você conhece foi criada recentemente e há um excelente livro que será traduzido para o português em 2022 chamado Jesus and John Wayne, provavelmente teremos mais respostas nele. Este é um livro de história e não teologia.
Dando nome aos bois
Não quero me delongar porque esse não é um artigo sobre teologia. Isso é só um texto de blog que busca analisar a seguinte questão: como a igreja cristã nega o próprio Cristo?
Para que isso seja feito é preciso algum esforço argumentativo e eles são:
- Focar no individualismo e negar qualquer virtude comunitária
- Focar na santidade pessoal e sexual e esquecer os heróis também era pecadores e que existem outros pecados (usura por exemplo)
- Focar demasiadamente em alguns textos e esquecer outros (ou mesmo ressignificar)
- Ignorar o lugar do pobre e humilde de todo o texto bíblico (se você nunca leu, vai perceber que o pobre tem um lugar central em todo o texto)
- Ignorar como a mulher tinha um papel na sociedade e propor que o papel dela hoje deve ser como era nas sociedades antigas (o qual a bíblia criticava)
- Isolar culturalmente, ideologicamente e teologicamente toda comunidade
- Demonizar o outro lado de debate
Eu não consigo ver a cultura evangelical brasileira (e americana) como cristã. Eles estão mais perto de um povo bárbaro que usa a imagem do Cristo como escudo, mas adoram um espantalho sinistro.