A (re)Gênesis do Estado

Victor Osório
11 min readOct 11, 2024

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Preâmbulo

Na tragédia que abalou o estado do Rio Grande do Sul, um teólogo se alvoroçou no Instagram para defender a abolição de todo o estado. Existem certos tipos de pessoas que não desejo acompanhar seus pensamentos, mas como não podemos controlar as mensagens que recebemos, acabou chegando nas mensagens diretas o famoso “cara, olha o que fulano está postando”.

Achei curioso alguém fazer um post tão ideológico em meio a uma tragédia. Tentei achar alguma mensagem se compadecendo das pessoas, mas nada. Acho mais curioso ainda é que essas pessoas se dizem conservadoras e pelo que entendo de conservadorismo, ela é uma doutrina política que prega a mudança lenta e gradual das instituições. Creio que abolir algo que convivemos há uns 10.000 anos não é uma mudança lenta.

Estados sempre estiveram aí, não na configuração atual de estado nacional, mas, como podemos ler no livro A Libertarian Walks Into a Bear, essas pessoas realmente querem a abolição total do estado. Elas seguem a máxima de dona Margaret Thatcher “não existe sociedade; existem apenas homens e mulheres individuais e as suas famílias, que olham primeiro para si mesmos”. Se foi ela ou não que inventou essa frase, não importa!

Nesse post quero tentar argumentar qual deve ser o papel de estado baseado em um texto muito antigo e que faz parte da base de fé dessas pessoas. Talvez você esteja se perguntando porque não uso um texto mais recente, primeiro porque não quero e segundo porque quero dialogar diretamente com essas pessoas. Quero mostrar que a ideologia delas é falha em sua origem, ela é recente e não tem nenhuma relação com a fé deles. Sejamos sincero, não precisa ser nenhuma Niède Guidon para entender que esse liberalismo conservador aí não é muito antigo, um exame de carbono-14 provaria que ela surgiu quando muito de nós já havíamos nascido.

Senta que talvez você se assuste com o texto escolhido e com as péssimas interpretações que as pessoas tiram dele. Mas é um livro que acho bastante interessante e há muito tempo venho tentando falar sobre ele. É um livro que fala sobre artes, ecologia, cidades, imperialismo e, por fim, sobre a função do estado e dos seus governantes.

Se ainda não percebeu o nome do livro tá no titulo desse post, é o Gênesis sim! Mas, já vou logo avisando que a leitura desses livro é muito poluída por uma série de interpretações infantis que existem na nossa cultura.

(Caso queira ver o referencial teórico, pode ler o livro abaixo)

Quando falamos de Gênesis a primeira história que vem na nossa memória é a sobre a criação do mundo. Uma história que muitos acreditam ser literal, inclusive em seus tempos e relatos. Já quero avisar que não estou aqui para debater fé, você pode acreditar no que quiser. Estou aqui para olhar para esses relatos com uma visão que o Tolkien tinha sobre Mitos.

Tolkien quando falava de Mitos dizia que eles eram usados para discutir temas relevantes e mostrar verdades para a sociedade. Em culturas antigas não existiam disciplinas, apenas histórias.

Tente imaginar uma criança lá na antiguidade que precisa aprender sobre a relação da humanidade com as artes. Sabemos que artes existem desde quando morávamos em cavernas, e o livro de Gênesis coloca um relato de um Deus criador que a cada coisa que criava ele apreciava. A frase “viu que era belo” se repete inúmeras vezes. Quando esse Deus resolve criar o Homem, o cria a sua imagem e semelhança.

Aí o que o conservador entende? Que Deus tinha duas orelhas e um nariz! O texto relata isso? NÃO! O texto só relata que esse Deus era um artista, tudo que ele fazia tinha uma beleza inerente.

Logo depois, esse mesmo Deus coloca o homem em um jardim, um tipo de agrofloresta, onde ele não precisaria trabalhar. Isso parece loucura para um texto escrito em algum lugar entre o Irã e o Egito, pois não devia ser fácil fazer agrofloresta no deserto. MAS… o que acontece quando os fieis dessa fé encontram um povo que vive em um jardim, um tipo de agrofloresta, onde eles não precisavam trabalhar? MATA TODO MUNDO!!!

Sim, meu caro leitor. Talvez nossos indígenas estivessem mais perto de Adão e Eva que qualquer civilização ocidental já chegou. E não quero romantizar eles, a Europa do século XVI era muito mais problemática que qualquer outra região do mundo.

O texto continua e talvez algum dia eu fale sobre como eu acho que a história de Caim e Abel se enquadra perfeitamente na história da extinção dos outros hominídeos. Nós, humanos, somos os únicos seres da terra que não convivemos com uma espécie semelhante. Cachorros tem lobos, gatos tem tigres, e nós…

Não sei se a ideia de um planeta governados por símios seria ruim não.

O Imperialismo em Gênesis

(Quando fui reler o texto, vi que o Medium perdeu mais da metade do texto. Mas já reescrevi!)

Para entender como o texto de Gênesis fala de imperialismo, é preciso primeiro compreender que a literatura antiga não discorre sobre assuntos abstratos, ela conta histórias sobre esses assuntos. E o livro de Gênesis é cheio dessas histórias, mas para falarmos de estado vamos nos focar em 3 histórias Ninrod, Gomorra e José.

(Já peço perdão que esse texto vai usar vários textos do livro para embasar meu argumento. Lembre-se que quero argumentar com as bases de um fundamentalista.)

O grande guerreiro e sua sede por conquista

Logo no capítulo 10 somos apresentados a um homem chamado Ninrode. O texto está contando as descendências de Noé. Eu não peço que você acredite ou não nessa história, mas devemos compreender os arquétipos que temos aqui. Ninrode é descrito como o homem mais poderoso da terra, um guerreiro que reinou sobre várias cidades sendo a principal dela Babel.

Cuxe gerou também Ninrode, o primeiro homem poderoso na terra. Ele foi o mais valente dos caçadores, e por isso se diz: “Valente como Ninrode”. No início o seu reino abrangia Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinear.

O nome Babel já deve ter ligado seus neurônios e feito você lembrar da Torre de Babel episódio da história bíblica onde Deus confundiu a língua dos homens porque eles queriam ser iguais a Deus, não é? ERRADO! Apesar dessa interpretação ser famosa ela não tem respaldo no texto.

Vamos dar uma olhada rapidamente no texto. Marco aqui dois pontos chaves do texto.

No mundo todo havia apenas uma língua, um só modo de falar.

Saindo os homens do Oriente, encontraram uma planície em Sinear e ali se fixaram. Disseram uns aos outros: “Vamos fazer tijolos e queimá-los bem”. Usavam tijolos em lugar de pedras, e piche em vez de argamassa. Depois disseram: “Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra”.

O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que os homens estavam construindo. E disse o Senhor: “Eles são um só povo e falam uma só língua, e começaram a construir isso. Em breve nada poderá impedir o que planejam fazer. Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros”.

Assim o Senhor os dispersou dali por toda a terra, e pararam de construir a cidade. Por isso foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de todo o mundo. Dali o Senhor os espalhou por toda a terra.

Não há nenhuma referência direta a Ninrode nesse texto, mas pelo contexto dá para afirmar que ele é o personagem principal desse relato. O texto é todo construido usando a terceira pessoa do plural, mas como o original não é em português não farei nenhuma suposição sobre isso. O que fica claro é que o objetivo não era alcançar a Deus, não era substituir Deus, mas conquistar outros povos. Volta na apresentação de Ninrode, ele foi o primeiro grande guerreiro a dominar mais de uma cidade. E esse texto já era velho quando os Romanos ainda estavam mamando nas tetas da loba (eu sei que loba é uma metáfora para prostituta).

Ninrode e o candidato da extrema direita a prefeitura de São Paulo

O mais irônico desse texto é que tivemos o nosso Ninrode na eleição a prefeito de São Paulo e os evangélicos votaram nele sem nem perceber as semelhanças de projeto. O indivíduo prometia um prédio de 1KM na cidade mais populosa da América do Sul sem nenhum planejamento urbano. Fico imaginando o trafego que esse prédio geraria se todo o sistema público de transporte não fosse adaptado para receber ele. Seria literalmente o inferno.

O engraçado é que a história de Ninrode se repete até hoje. Vamos olhar para os EUA! O seu período auge foi caracterizado pela construção de grandes torres com o mesmo intuito de Ninrode! Curiosamente a sua queda é precedida pela queda das duas torres. É como se houvesse uma relação intima entre o simbolismo fálico de construir torres e a necessidade de dominar outros povos.

Se você tem menos de 23 anos, esses torres eram altas pra um c****lo! Esses prédios do lado já são altos.

Gomorra: A cidade do pecado, mas não esse que você está pensando

Depois o outro relato de civilização a ser descrito é a destruição de Sodoma e Gomorra. Essas duas cidades irmãs foram destruídas, e são a origens mitológicas do Mar Morto, por causa do seu pecado. MAS, precisamos fazer justiça ao texto, o pecado não é esse que você está pensando.

O texto não entra em detalhes qual é esse pecado, mas há alguns relatos como quando Abraão liberta o povo de Sodoma e o rei oferece todas as riqueza para Abrão mas ele recusa com medo de depois ser cobrado por isso. Já mostra que o rei daquela cidade não tinha boa reputação. Mais a frente a cidade será destruída e tem um relato interessante onde três homens (não são anjos segundo o texto) vão avisar o primo de Abraão para abandonar a cidade, mas as pessoas pedem esses homens como “posse”. Pode haver a conotação sexual, mas dá a entender que eles queriam festejar, o que corrobora com a interpretação corrente de todo a bíblia, como está relatado no texto abaixo.

Ora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: Ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados. Jeremias 16:49

Assim, Sodoma, que nomeia até uma preferência sexual, foi destruirá não pela suas questões sexuais, mas porque não ajudavam quem estava ao lado. Esse texto e essa interpretação é muito importante porque ela está em oposição ao próximo fato que é a grande fome.

Uma resposta ao Imperialismo

Para entender essa última história é preciso compreender a história de Abraão, mas eu não vou ficar relatando os textos aqui porque seriam extensos e cansativos. Vou tentar resumir a história do patriarca de ao menos 2 etnias e 3 grande religiões em poucas palavras.

Abrão nasce em Ur, mas um Deus desconhecido o chama para mudar o nome para Abraão e perambular no deserto porque ofereceu a ele a oportunidade de ser um pai de uma grande nação e que sua descendência abençoaria toda a terra (grava essa promessa). Mas ele já está velho e não tem filhos. Ele se envolve em um monte de confusão, tem um filho, esse Deus pede para ele matar o filho mas depois se arrepende (os deuses do Oriente Médio antigo pediam sacrifícios humanos). Então ele tem um filho e o neto, Jacó, dele não conseguia guardar o pingolin dentro da calça e casa com duas esposas porque o sogro era picareta (tem uma história de amor romântico aqui, Jacó era apaixonado por Raquel). Jacó tem 12 filhos e os mais velhos vendem o mais novo, José, como escravo para o Egito, mas o mais novo era “empreendedor” (nada, só bom administrador) e vira governador de tudo (não, provável que nem tivesse tanto poder). José é tentado pela esposa de um oficial do faraó, preso e na prisão interpreta um sonho maluco de um chefe dos copeiros de sete vacas magras comendo sete vacas gordas. José vira governador e impõe um ajuste fiscal ao contrário, fazendo um monte de obra pública para construir mais armazéns para armazenar mais trigo. Nesse ponto da história uma grande seca assola a terra!

(O autor do livro O desejo do vinho relata que essa história de Abraão coincidentemente bate com a migração da produção de vinho. Logo, Abraão pode ser interpretado como a pessoa responsável por disseminar essa cultura. Obrigado Abraão!!!!)

E é nessa seca que há o ápice de toda história do Gênesis. Em uma série de encontros e desencontros, José planeja se vingar de seus irmãos, mas se arrepende faz as pazes e, plot twist, abre os celeiros do Egito para todos os povos do Oriente Médio! Aqui é preciso interpretar o livro como um livro fechado. A grande maioria dos cristão ideologicamente interpreta essa descendência de Abraão como Jesus e essa bênção seria algo imaterial. Mas o texto é bem claro que a tal bênção é material sim, e a descendência é José, seu bisneto.

O que vemos aqui é um arquétipo de governador de província que além de ser precavido, armazenando comida na época de fartura, distribui comida aos povos vizinhos.

Contrastando os três modelos

O livro de Gênesis não trará uma discussão extensiva sobre modelos de estados, até porque isso não existia até muito recentemente na história humana. O que o livro oferece são três modelos onde o Deus hebreu se posiciona ao lado deles.

O primeiro é Ninrode, o guerreiro conquistador. Deus ativamente trabalha para evitar que ele ganhe mais poder.

O segundo é o rei de Sodoma, o povo voltado para as riquezas que não se compadeciam dos pobres ao seu redor. Deus destrói essa cidade sem piedade.

Por fim temos José, descendência de Abraão. Um político justo, inteligente e precavido. Ele foi solidário com os povos ao seu redor os socorrendo em momentos de necessidade.

O texto, e nenhum outro texto da bíblia, advoga a favor de algo parecido com o que prega o neoliberalismo contemporâneo. Esse texto é a paixão de muitos que defendem coisas que o texto nem se dá ao trabalho de comentar, ao contrário, é um texto que pode ser interpretado como uma epopeia de um homem formando um estado ao redor de duas grandes civilizações.

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Senior Software Engineer@Openet | Java | Software Architect | Technology | Society

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